Ignorância, má ciência e desinformação na medicina veterinária: o que estamos realmente aplicando na clínica?
⚠️ ATENÇÃO
As opiniões expressas e os tópicos discutidos em qualquer coluna ou artigo têm como objetivo informar, educar ou entreter, e não representam uma posição oficial de nenhum órgão ou instituição.
ESTE TEXTO É UM DESABAFO…
A prática veterinária atual valoriza o uso da medicina baseada em evidências. É comum encontrarmos em congressos, artigos, redes sociais e até em discussões clínicas frases como: “segundo a literatura” ou “como mostram os estudos mais recentes”.
Mas será que estamos mesmo interpretando corretamente a ciência? Será que ela está sendo produzida com qualidade suficiente para guiar nossas decisões?
Nos últimos anos, a Evidence-Based Veterinary Medicine Association (EBVMA) tem alertado sobre um problema crescente e ainda pouco discutido: a maioria das evidências que usamos na prática clínica veterinária é fraca, enviesada ou mal interpretada.
E isso não é só uma preocupação teórica — tem impacto direto na qualidade dos diagnósticos, tratamentos e prognósticos que oferecemos aos nossos pacientes.
1. Ignorância: quando não sabemos, que não sabemos
Ignorância, aqui, não é uma ofensa, mas a constatação de uma lacuna de conhecimento. Nenhum profissional consegue acompanhar tudo o que é publicado em todas as áreas da medicina veterinária.
Mas o problema é mais profundo: mesmo quando acessamos os artigos certos, muitas vezes não temos formação sólida em epidemiologia ou bioestatística para interpretar corretamente os dados.
Ignorância clínica pode surgir de:
Falta de pesquisa sobre uma determinada condição
Ausência de diretrizes clínicas claras
Limitações metodológicas em estudos existentes
Muitos profissionais e estudantes não têm acesso à informação mais atualizada, ou não foram treinados para avaliá-la criticamente. Isso os torna vulneráveis a decisões clínicas baseadas em intuição ou experiência pessoal anedótica — e não em evidência confiável.
Exemplo clínico
Você está diante de um cão com convulsões recorrentes. Um artigo recente relata sucesso com um anticonvulsivante novo. Mas:
Quantos cães participaram do estudo?
Houve grupo controle?
O estudo foi randomizado e duplo-cego?
A melhora foi estatisticamente e clinicamente significativa?
O estudo foi financiado por quem produz o medicamento?
Essas perguntas raramente são feitas — e, sem elas, tomamos decisões mais baseadas em esperança do que em ciência.
2. Má ciência: quando a evidência não é evidência de verdade
Boa parte da literatura veterinária sofre de sérios problemas metodológicos. Estudos mal planejados, amostras pequenas, ausência de grupo controle, análises estatísticas frágeis, dados incompletos, conflitos de interesse não declarados... a lista é longa.
Má informação refere-se à informação incorreta, mas compartilhada sem intenção de enganar. Exemplos comuns:
Repetição de dados antigos já refutados
Extrapolação de estudos fracos
Uso indevido de estatísticas (como valores de p mal interpretados)
Difusão de estudos pré-clínicos como se fossem evidência clínica
O maior risco da má informação é que ela parece legítima — porque vem de revistas científicas ou especialistas. Mas isso não garante robustez metodológica nem relevância clínica.
Dados preocupantes:
Uma revisão sistemática sobre o uso de anti-inflamatórios na dor aguda em cães mostrou que mais de 70% dos estudos incluídos tinham alto risco de viés.
Muitos estudos não reportam sequer como fizeram a randomização ou se houve cegamento dos avaliadores.
Na neurologia, é comum vermos séries de casos (sem grupo controle) sendo usadas para justificar mudanças terapêuticas importantes.
Ou seja: mesmo em revistas qualificadas, podemos estar lendo ciência mal executada.
E isso não significa má intenção: produzir boa ciência é difícil. Envolve tempo, financiamento, infraestrutura e ética — recursos muitas vezes escassos na nossa área.
3. Desinformação: quando a verdade é distorcida (ou fabricada)
Diferente da má informação (compartilhada sem intenção de enganar), a desinformação é proposital: informação falsa usada para manipular opiniões.
E ela também está entre nós.
Exemplos reais:
Empresas que patrocinam pesquisas com seus próprios produtos e publicam apenas os resultados positivos
Revisões narrativas escritas por “experts” que omitem dados desfavoráveis
Materiais educativos que não revelam conflitos de interesse
Resumos de artigos que distorcem os resultados para parecerem mais eficazes
4. O problema da “evidência traduzida”
A maioria dos veterinários não lê os artigos originais. É compreensível: falta tempo, energia, às vezes acesso.
Por isso, dependemos de fontes intermediárias:
Guias clínicos
Artigos de revisão
Congressos e webinars
Plataformas como Vetfolio, Vetsmart, Vetlexicon, entre outras
Essas fontes fazem curadoria da literatura, mas nem sempre com critérios transparentes ou rigorosos. E, às vezes, apenas reforçam o que é conveniente para quem financia.
Resultado: má ciência pode virar “consenso” , mesmo quando há dúvidas legítimas.
5. Como podemos reagir?
A boa notícia: é possível fazer melhor.
Passos concretos para uma prática mais crítica:
Aprenda a avaliar criticamente um artigo : busque cursos, oficinas, mentorias
Desconfie de soluções simples, principalmente quando vêm da indústria
Prefira revisões sistemáticas e meta-análises bem conduzidas
Pergunte sempre: “quem financiou?” e “o que foi realmente medido?”
Participe de eventos que realmente promovem medicina baseada em evidências — de verdade
Conclusão
A medicina baseada em evidências na veterinária ainda está em construção. E não é uma estrada pavimentada é cheia de armadilhas, atalhos enganosos e vozes gritando “por aqui!” sem mostrar os dados.
A responsabilidade de construir esse caminho é nossa.
Significa questionar, estudar, buscar, e acima de tudo admitir que nem sempre sabemos o suficiente para ter certeza.
Ignorância é o ponto de partida da sabedoria.
Mas só se estivermos dispostos a confrontá-la.
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Referências:
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DI GIROLAMO, N.; MEURSINGE REYNDERS, R. Deficiencies of effectiveness of intervention studies in veterinary medicine: a cross-sectional survey of ten leading veterinary and medical journals. PeerJ, v. 4, p. e1649, 2016. DOI: 10.7717/peerj.1649.
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