Síndrome Braquicefálica Obstrutiva das Vias Aéreas (BOAS)
Muito Além da Cirurgia – A síndrome canina sistêmica silenciosa
⚠️ ATENÇÃO
As opiniões expressas e os tópicos discutidos em qualquer coluna ou artigo têm como objetivo informar, educar ou entreter, e não representam uma posição oficial de nenhum órgão ou instituição.
Nos últimos anos, a popularização de raças braquicefálicas como Bulldogs, Pugs e Shih Tzus aumentou significativamente nos lares brasileiros e no mundo. Paralelamente, aumentou também a nossa responsabilidade enquanto profissionais de saúde animal. A síndrome obstrutiva das vias aéreas braquicefálicas (BOAS) é muito mais do que uma condição anatômica tratável por cirurgia: trata-se de uma síndrome sistêmica progressiva, inflamatória e silenciosa que demanda uma abordagem clínica integrada, e ética.
História dos braquiocefálicos
Braquicefalia, do grego brakhu (curto) e cephalos (cabeça), é a conformação craniana encurtada observada em cãses de raças como: pug, bulldog francês e Boston terrier. Essa característica foi historicamente selecionada por sua funcionalidade em práticas como o bullbaiting (uma prática cruel e sangrenta muito comum na Europa, especialmente na Inglaterra, entre os séculos XIII e XIX) e, mais recentemente, por motivos estéticos ligados ao apelo “infantil” dessas raças. O encurtamento do crânio, sem redução proporcional dos tecidos moles, levou ao surgimento da Síndrome Obstrutiva das Vias Aéreas Braquicefálicas (BOAS).
Fonte: By Staff of Illustrated News - "Illustrated News", 23 April, 1853, via copy at http://wwno.org/post/mid-19th-century-vicious-animal-combat-drew-thousands-algiers, Public Domain,
O que é?
A Síndrome Obstrutiva das Vias Aéreas Braquicefálicas (BOAS) é uma condição respiratória progressiva causada por alterações anatômicas resultantes da seleção artificial por focinhos achatados, uma característica estética valorizada há séculos, mas que compromete gravemente a saúde e o bem-estar de cães braquicefálicos.
- Obstrução parcial das vias aéreas superiores primárias, causada por:
Narinas estreitas (estenóticas)
Hipertrofia da mucosa dos cornetos nasais (o que pode predispor a processos infamatórios)
Palato mole alongado (o aumento progressivo da resistência das vias aéreas e as alterações de pressão associadas exacerbam o espessamento e o alongamento do palato mole ao longo do tempo)
Traqueia mais estreita (hipoplasia traqueal)
Colapso da laringe e/ou faringe
Macroglossia (proporção da lingua maior em relação a conformação da cabeça - o que contribui para o deslocamento dorsal do palato mole aumentando o fluxo de ar turbulento na nasofaringe).
Com a progressão da Síndrome Obstrutiva das Vias Aéreas Braquicefálicas, ocorrem diversas alterações secundárias que agravam ainda mais o quadro clínico. Essas mudanças são resultado da obstrução crônica, da pressão negativa excessiva nas vias aéreas e da inflamação persistente, COMO:
Aumento das tonsilas palatinas (seu aumento tem sido associado a infecções respiratórias e à diminuição da tolerância ao exercício);
Eversão dos sáculos laríngeos (devido ao esforço respiratório prolongado, os sáculos laríngeos se projetam para dentro da luz da laringe, causando ainda mais obstrução)
Colapso Laringeo - Inicialmente leve (colapso das cartilagens aritenoides), pode evoluir para formas graves e irreversíveis, comprometendo seriamente a passagem de ar.
- Isso leva a sinais clínicos como:
Esforço para respirar (principalmente em repouso ou exercício)
Intolerância ao exercício
Episódios de cianose (língua ou gengiva azulada)
Problemas gastrointestinais (como refluxo e vômitos)
E, nos casos mais graves, comprometimento de outros órgãos e sistemas
Muito além do focinho achatado: a fisiopatologia oculta
A obstrução crônica das vias aéreas superiores — causada por narinas estenóticas, palato mole elongado e hipoplasia traqueal — gera um estado contínuo de esforço respiratório, hipoventilação e hipóxia intermitente.
Isso desencadeia:
Inflamação de baixo grau persistente, documentada por biomarcadores como proteína C reativa e alterações hematológicas;
Ativação do sistema simpático, levando a hipertensão sistêmica e sobrecarga cardiovascular;
Estresse oxidativo e alterações na função hepática, inclusive com rigidez hepática detectável por elastografia.
Mesmo animais assintomáticos ao exame físico podem estar sofrendo de hipóxia crônica silenciosa, com repercussões em múltiplos sistemas.
Gastrointestinal, hepático e cardiovascular: os sistemas esquecidos
Estudos demonstram que até 97% dos cães com BOAS apresentam sinais gastrointestinais, incluindo:
Vômitos intermitentes;
Regurgitação;
Refluxo gastroesofágico;
Hérnia de hiato.
A hipóxia intermitente também afeta o fígado, e a elastografia hepática evidencia aumento de rigidez hepática nesses cães, sugerindo fibrose ou inflamação crônica hepática. Este dado é especialmente importante, pois esses achados ocorrem mesmo na ausência de alterações bioquímicas séricas.
Outro ponto negligenciado: hipertensão arterial sistêmica. Estudos recentes apontam que cães braquicefálicos têm pressões arteriais mais elevadas do que cães normocéfalos, mesmo sem outras comorbidades. O monitoramento da pressão arterial deveria ser rotina nesses pacientes.
A hipóxia crônica e o aumento da resistência ao fluxo de ar podem gerar aumento da pressão pulmonar e, com o tempo, hipertrofia do ventrículo direito (cor pulmonale).
Distúrbios do sono: apneia
Distúrbios respiratórios do sono em cães braquicefálicos são subdiagnosticados. Eles se manifestam como:
Sono inquieto;
Episódios de engasgos ou roncos intensos;
Fadiga crônica;
Síncope;
Distúrbios comportamentais relacionados à privação de sono.
Assim como em humanos com apneia obstrutiva, esses distúrbios promovem hipóxia, inflamação, disfunção imunológica e alteração na regulação do apetite, fatores que pioram a condição geral do paciente.
BOAS e a Neurologia
Embora BOAS seja comumente associada a problemas respiratórios crônicos, o comprometimento das vias aéreas superiores em cães braquicefálicos pode se agravar rapidamente em situações clínicas agudas, como internações por outras condições — especialmente neurológicas.
Um exemplo marcante disso é evidenciado por um estudo recente com buldogues franceses hospitalizados para tratamento de extrusão de disco intervertebral (EDIV). Dos 306 cães incluídos, cerca de 20% apresentaram comprometimento respiratório durante a internação, sendo que mais de 10% evoluíram para cianose, colapso ou parada respiratória (Foster et al., 2023).
Esses dados mostram como a anatomia braquicefálica pode aumentar significativamente o risco respiratório em situações de estresse, anestesia, sedação ou imobilidade, tornando essencial o monitoramento intensivo e a preparação prévia mesmo em procedimentos não relacionados ao trato respiratório.
O papel do clínico: intervenção precoce e vigilância contínua
Embora a cirurgia corretiva (estenoplastia, ressecção do palato mole) seja útil, ela não resolve a síndrome sistêmica associada à BOAS. O clínico veterinário tem um papel central na:
Identificação precoce mesmo em cães sem sinais clássicos - alguns estudos sugerem que a rinoplastia em filhotes braquiocefálicos podem reduzir a progressão da síndrome em cães.
Educação dos tutores, desmistificando a “normalidade” do ronco ou cansaço;
Abordagem clínica completa, que pode incluir:
Avaliação gastrointestinal completa - muitas vezes incluindo exames como endoscopia, triagem de Hiperssensibilidade alimentar
Avaliação periódica de função hepática;
Monitoramento da pressão arterial;
Avaliação de coagulação (em especial pré-cirurgia);
Antitrombóticos (quando indicados)
Controle de peso: a obesidade piora o quadro respiratório, gastrointestinal e metabólico.
Conformação, ética e saúde: onde traçamos a linha?
A normalização do sofrimento precisa ser enfrentada. Acreditar que “todo bulldog ronca” é perigoso, pois retarda o diagnóstico e perpetua a seleção de características prejudiciais à saúde.
Conselhos e associações internacionais, como a WSAVA e a British Veterinary Association, têm se posicionado contra os padrões de raça que promovem extremos anatômicos. Como profissionais, precisamos:
Apoiar campanhas de conscientização;
Educar os tutores com empatia e evidência;
Ser vozes ativas em prol do bem-estar animal.
Conclusão
BOAS é uma síndrome progressiva, sistêmica e frequentemente silenciosa. Reduzi-la a um problema cirúrgico é ignorar seu impacto no organismo como um todo. Cuidar de um braquicefálico exige mais do que bisturi: exige atenção clínica, vigilância contínua e compromisso ético.
REFERÊNCIAS:
Iotchev IB, Bognár Z, Tóth K, Reicher V, Kis A, Kubinyi E. Sleep-physiological correlates of brachycephaly in dogs. Brain Struct Funct. 2023;228(9):2125-2136. doi:10.1007/s00429-023-02706-y
Foster, E., West, N., Butterfield, S., Rusbridge, C., & Crawford, A. (2023). Respiratory compromise in French bulldogs presented with intervertebral disc extrusion. The Veterinary record, 193(12), e3603. https://doi.org/10.1002/vetr.3603
Mitze, S., Barrs, V. R., Beatty, J. A., Hobi, S., & Bęczkowski, P. M. (2022). Brachycephalic obstructive airway syndrome: much more than a surgical problem. The veterinary quarterly, 42(1), 213–223. https://doi.org/10.1080/01652176.2022.2145621
Goossens, J., Meyer-Lindenberg, A., Zablotski, Y., & Schroers, M. (2025). Short-term effects of brachycephalic obstructive airway syndrome surgery on fitness and exercise in brachycephalic dogs. Frontiers in veterinary science, 12, 1481717. https://doi.org/10.3389/fvets.2025.1481717
Schmid, C., Steiner, A. R., Spielhofer, L., Galfetti, M., Rentsch, N., Bogdanov, N., Vogel, J., Hofmann-Lehmann, R., Hartnack, S., Astakhov, G., Furrer, R., Bogdanova, A., & Reichler, I. M. (2025). Anatomical, functional, and blood-born predictors of severity of brachycephalic obstructive airway syndrome severity in French Bulldogs. Frontiers in veterinary science, 11, 1486440. https://doi.org/10.3389/fvets.2024.1486440
Brložnik, M., Nemec Svete, A., Erjavec, V., & Domanjko Petrič, A. (2023). Echocardiographic parameters in French Bulldogs, Pugs and Boston Terriers with brachycephalic obstructive airways syndrome. BMC veterinary research, 19(1), 49. https://doi.org/10.1186/s12917-023-03600-9
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