Síndrome da Hiperestesia Felina - novos horizontes?
Novo estudo compara diferentes abordagens terapêuticas
⚠️ ATENÇÃO
As opiniões expressas e os tópicos discutidos em qualquer coluna ou artigo têm como objetivo informar, educar ou entreter, e não representam uma posição oficial de nenhum órgão ou instituição.
A síndrome da hiperestesia felina (SHF) é um dos quadros mais enigmáticos da medicina felina. Alternando entre um distúrbio neurológico, dermatológico ou comportamental, ou talvez todos ao mesmo tempo, ela desafia diagnósticos, frustra tentativas terapêuticas e, frequentemente, cria tensão entre clínicos e tutores.
Embora a Síndrome de Hiperestesia Felina (SHF) tenha sido descrita há quase quatro décadas, sua etiologia permanece indefinida. Muitos clínicos, inclusive, consideram o termo “SHF” como uma designação ampla e inespecífica, englobando diferentes condições que compartilham manifestações clínicas semelhantes.
Os sinais clínicos descritos da síndrome são:
Perseguição da própria cauda
Mordedura ou lambedura excessiva nas seguintes regiões:
Lombossacral
Flancos
Região perianal
Cauda
Ondulações cutâneas (“rolling skin”)
Espasmos musculares na região lombar dorsal
Podem ser espontâneos ou induzidos por toque leve
Vocalizações intensas e incomuns
Episódios súbitos de corrida ou saltos descontrolados
Casos graves envolvem mutilação de cauda
Nesse link, você pode ver um vídeo de um gatinho com a Síndrome.
E as possíveis causas?
De forma anedótica, sinais compatíveis com SHF já foram relatados em associação com diversas patologias, incluindo:
Dermatológicas: como dermatite alérgica ou hipersensibilidade a pulgas
Comportamentais: como transtornos compulsivos e comportamentos de ansiedade, medo, agressividade com outros animais
Ortopédicas: como traumas de cauda
Neurológicas: como epilepsia idiopática, encefalites, tumores cerebrais, doenças medulares (como doença do disco intervertebral, neoplasias espinhais ou mielite infecciosa)
E com tantos diagnósticos diferenciais, como diagnosticar?
Em 2019 foi proposto um fluxograma para diagnóstico da causa de SHF
Figura 1. Adaptada de Marioni-Henry et al., 2019.
Tratamentos descritos
Diversas abordagens terapêuticas têm sido propostas para o manejo da SHF, utilizando medicamentos com diferentes finalidades, incluindo:
🔹 Antiepilépticos:
Fenobarbital
Diazepam
🔹 Anti-inflamatórios:
Prednisolona
🔹 Analgésicos adjuvantes:
Gabapentina
🔹 Modificadores de comportamento:
Lorazepam
Oxazepam
Buspirona
Amitriptilina
Fluoxetina
Paroxetina
Clomipramina
🔹 Hormonioterapia (progestágenos):
Acetato de megestrol
🔹 Vitaminas e suplementos diversos:
Acetil-L-carnitina
Coenzimas
Riboflavina
Vitamina E
Apesar da ampla gama de tratamentos propostos, até o momento não tinhamos estudos científicos que avaliem de forma sistemática e controlada a eficácia clínica dessas abordagens em gatos com sinais compatíveis com a SHF.
Neste artigo, trago uma análise crítica e aplicada do trabalho publicado em 2025 por Pauciulo et al. no Journal of Veterinary Internal Medicine, que avaliou o resultado clínico de longo prazo em 28 gatos com SHF, submetidos a diferentes abordagens terapêuticas. Pela primeira vez, temos uma visão comparativa, com seguimento de 1 ano, sobre as estratégias mais eficazes.
O Estudo: o que foi feito?
Tipo de estudo: retrospectivo, observacional e descritivo
Período analisado: 2018 a 2023
Casos incluídos: 28 gatos com diagnóstico de SHF e acompanhamento de pelo menos 1 ano
Critérios de inclusão:
Sinais clínicos compatíveis com SHF
Exames laboratoriais normais
Exclusão de causas estruturais via RM de coluna lombossacral (e líquor, quando realizado)
Avaliação neurológica por neurologista (ECVN)
Avaliação comportamental por diplomado ECAWBM (quando indicada)
Grupos terapêuticos:
Fluoxetina isolada (n = 16)
Fluoxetina ou gabapentina + modificação comportamental (n = 7)
Modificação comportamental isolada (n = 5)
Principais Resultados
O Que Isso Nos Diz na Prática?
1. A Fluoxetina é eficaz — mas não suficiente sozinha?
A remissão foi rápida, e o controle dos sinais clínicos ocorreu em mais de 87% dos casos. No entanto, a maioria desses gatos permaneceu medicada ao final de 1 ano. Um único caso teve recaída, justamente após a suspensão do fármaco. Ou seja, ela age bem, mas o comportamento (e o ambiente) continuam sendo gatilhos se não forem abordados.
2. A modificação comportamental sustenta o desmame medicamentoso
Nos grupos que receberam intervenção comportamental (com ou sem fármacos), a remissão se manteve mesmo após a suspensão do tratamento farmacológico e sem recaídas relatadas.
Isso reforça que o foco no ambiente, nas interações e nas necessidades instintivas do gato pode atuar na causa subjacente do distúrbio.
A terapia comportamental aplicada aos gatos com SHF foi baseada no respeito aos “Cinco Pilares do Bem-Estar Felino”. Esses pilares forneceram a estrutura para avaliação e modificação ambiental, com foco na redução do estresse crônico e estímulo ao comportamento natural dos gatos.
Os cinco pilares:
Espaço seguro:
Prover locais de refúgio onde o gato possa se esconder ou descansar sem ser perturbado.
Disponibilidade de recursos:
Garantir múltiplas fontes separadas de alimentos, água, caixa de areia e locais de descanso para reduzir competição e permitir escolhas.
Brincadeiras e comportamento predatório:
Oferecer oportunidades diárias para caça simulada, escalada, exploração e brincadeiras interativas.
Interação social positiva:
Incentivar interações humanas previsíveis, respeitosas e positivas.
Evitar qualquer forma de punição ou coerção física.
Enriquecimento olfativo:
Permitir marcação olfativa natural (ex.: esfregar o rosto nos objetos).
Introduzir aromas e feromônios de forma controlada, quando indicado.
Os tutores foram educados para observar e interpretar corretamente as respostas emocionais e comportamentais dos gatos. Foi explicitamente orientado evitar qualquer método punitivo durante o manejo ou correção de comportamentos.
3. Tempo de resposta vs. durabilidade da resposta
Fluoxetina = rápida ação (8 dias)
Comportamental isolado = lento (60 dias)
Fluoxetina + Comportamento = mais lento ainda (100 dias), mas com maior probabilidade de descontinuação da droga
A Visão Neurocomportamental
O artigo traz uma discussão sofisticada: a SHF pode representar uma manifestação somática de um estado afetivo negativo crônico — frustração, medo ou conflito. O circuito corticolímbico (amígdala, hipocampo, córtex pré-frontal) pode estar envolvido, como visto em distúrbios compulsivos.
Nesse cenário, o comportamento não é apenas consequência, mas parte do sintoma neurológico. Isso muda tudo e abre discussões para próximos estudos.
Implicações clínicas diretas:
Avaliação comportamental deve ser obrigatória em gatos com SHF.
Terapias como a "5 pilares" da AAFP/ISFM não são apenas recomendadas — são terapêuticas (espaço seguro, recursos distribuídos, interação positiva, estimulação sensorial e comportamentos naturais).
Evitar punições, garantir previsibilidade, estimular caça lúdica, criar territórios verticais e múltiplos recursos são medidas clínicas, não só educativas.
A fluoxetina pode ser necessária em fases agudas, mas o plano deve incluir uma meta de retirada gradual, amparada por suporte comportamental.
Efeitos adversos foram discretos: anorexia, diarreia e vômito foram observados, sobretudo com fluoxetina, geralmente associados ao aumento da dose.
Conclusão
Ainda não sabemos muitos aspectos da síndrome, mas para tratá-la, é preciso uma intervenção multimodal, que respeite o comportamento natural, ambiente e estado emocional dos gatos.
Referências:
AMENGUAL BATLE, P.; RUSBRIDGE, C.; NUTTALL, T.; HEATH, S.; MARIONI-HENRY, K. Feline hyperaesthesia syndrome with self-trauma to the tail: retrospective study of seven cases and proposal for an integrated multidisciplinary diagnostic approach. Journal of Feline Medicine and Surgery, Londres, v. 21, n. 2, p. 178–185, 2019.
PAUCIULO, C. et al. Long-term clinical response to medical treatment, behavioral therapy, or their combination in cats with hyperesthesia syndrome. Journal of Veterinary Internal Medicine, [S.l.], v. 39, e70174, 2025.
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Esse conteúdo esta incrivel!
Muito legal!!! Impressionante que somente manejo comportamental também atinja os mesmos resultados que a medicalização, né?